INICIATIVA DA ADM JUNTA 22 ALUNOS Curso de culinária macaense conquista novos “mestres” Ao sábado, a partilha e o encontro de culturas ultrapassam a sala de refeições da Associação dos Macaenses (ADM). Momentos quase familiares vivem-se na cozinha à volta de “Dona Catarina” e dos seus tachos com cheiro a especiarias orientais típicas da mesa macaenseSANDRA PEREIRAÉ meio dia e meia hora. Esta é a hora em que os 22 alunos do curso de culinária macaense, que iniciou no final do mês passado na ADM, degustam o almoço que aprenderam a preparar. No menu do dia, sopa de Lacassa, porco balichão tamarindo e arroz carregado. Enquanto a maioria come com colher, três alunos e a cozinheira seguram faca e garfo. Mais macaense, não podia ser.“Que acham do molho balichão?”, pergunta Catarina Ramos aos seus alunos. Hora de repouso e degustação para a cozinheira e professora de serviço, uma vez que o curso, com duração prevista até 5 de Julho, tem mais monitoras. Agora sim, depois “das relíquias” que elaborou estarem no paladar de cada aluno, é toda ouvidos às opiniões, críticas, sugestões e perguntas. “Também posso errar!”, admite.Nesse dia, uma aluna confeccionou pão e, por isso, a professora adicionou mais molho do que o habitual. “É demais!”, lamenta, porém, a cozinheira, que gosta de comida “simples e com pouco sal”.“A Dona Catarina é uma cozinheira experiente que conhece bem os pratos típicos macaenses”, elogia Carolina Tian, uma das alunas.
A tradutora, que nasceu em Pequim, mas já viveu oito anos em Lisboa, é sócia da ADM e costuma almoçar lá. Gosta da comida macaense, “uma mistura de ingredientes interessante”, mas hoje não entrou na cozinha. O porco balichão não lhe aguça o apetite. “É um prato ácido e cheira mal! Não gosto!”, justifica.Contudo, Carolina gosta dos pratos macaenses e se a “capela” — uma espécie de rolo de carne com queijo ralado - não fosse tão salgada e com tantas calorias, gostava mais. “A comida portuguesa é um pouco salgada para os asiáticos, mas a macaense ultrapassa esse obstáculo acrescentando um vinho chinês, açúcar, gengibre...”, comenta ainda. Mas passando à prática...RECEITA DA HARMONIA.
Primeira lição: “O molho balichão é uma pasta de camarões muito afamada no sudeste asiático fermentada com sal do mar, vinho europeu e chinês, louro e limão durante três meses”. Antes de “colocar a panela ao lume”, a “Dona Catarina” dá uma explicação sobre a confecção dos pratos e lança o aviso para não fazerem demasiadas perguntas durante a aula, mas sim apontá-las. “Com 22 alunos, se perguntam todos ao mesmo tempo, quebra-se o ritmo e não consigo cumprir o horário para terminar a aula”, explica a cozinheira. Concentração, de modo a não esquecer nenhum ingrediente, também lhe faz falta.Segunda lição: mãos à obra. A cozinha da ADM ganha vida e agitação, como qualquer uma, mas é demasiado pequena para tanto interesse nos paladares macaenses. Os cheiros aromáticos asiáticos atraem os alunos, reunidos à volta de Catarina, que não querem perder pitada e vão anotando algumas dicas práticas. É que a cozinheira fornece as medidas, mas não o modo de preparação... É esse é o pormenor que faz a diferença. O verdadeiro segredo de uma boa cozinheira.“Há alunos mais profissionais e outros que nem sabem pegar numa faca. Tenho que estar no meio deles e criar uma harmonia”, revela a cozinheira. Para conseguir a receita da harmonia, precisa de “falar o dobro”, em cantonense e português. No início, confessa que ficou “atrapalhada”, mas rapidamente se adaptou ao bilinguismo. “Quando se tem alunos de diferentes nacionalidades e diferentes saberes, tem se adoptar um método muito neutro e ter paciência”, conclui.Terceira lição: a prática. Na aula seguinte, Catarina Ramos procura sempre saber se os alunos aplicaram os petiscos aprendidos. “Se em 20 alunos, três praticaram, já é bom!”, considera.
TRABALHO ESFORÇADO. Sempre de olho nas panelas da cozinheira, Fernando Marques garante que faz parte dos “três praticantes”. Em casa, o dono do já encerrado café “Ou Mun” garante que, normalmente, os pratos saem bem. Só o pudim de coco, à base do sago, é que “não funcionou”, mas não se dá por vencido: “com a prática chega-se lá!”.Apesar dos problemas com o anterior estabelecimento, Fernando Marques diz que a restauração é definitivamente o seu ramo e, por isso, espera abrir um novo estabelecimento no próximo mês, também na zona do Largo do Senado. Daí, a vontade de saber mais sobre a gastronomia macaense. “Para um turista, poder comer um prato macaense no centro da cidade é bom”, considera.Entretanto, Catarina aconselha Fernando a puxar mais para o salgado nos pratos que irá confeccionar. “É que se não tiver muito sabor, não puxa ao vinho!”, diz sorrindo.Há nove anos em Macau, é o único homem do curso, mas não tem qualquer problema com isso. Fernando até acha que a cozinha é coisa de homens. “É um trabalho esforçado, requer alguma força e muitas horas de serviço”, diz. Ainda assim, reconhece que “elas” têm mais sensibilidade para os temperos.Para o aprendiz, esta foi uma “boa iniciativa da ADM”. O curso custa 150 patacas, mas Fernando acha que “para o serviço que prestam e o preço de mercado dos ingredientes, é uma quantia simbólica”.FESTA. Catarina Ramos gosta de enfeitar os pratos e diz que a comida que ensina serve para festas. Por isso, prefere alunos com alguma experiência na hora de lidar com os tachos.Como manda a tradição de Macau, é boa anfitriã. “Quando vejo a comida feita com bom aspecto e sabor, sinto-me bem. E quando vejo os meus amigos a repetir, melhor ainda”, confessa. Os elogios que recebe das amigas que convida para casa, são “talvez por simpatia”, diz modestamente. Na verdade, a sua participação num programa de culinária no Canadá, retransmitido nos Estados Unidos e em Hong Kong, vem confirmar a sua boa reputação. Nesse dia, o conhecido chefe Martin Yan, um chinês de Cantão, convidou-a para cozinhar a “comida de casa dela”. Boa escolha. “O melhor restaurante de Macau é a cozinha de minha casa”, confirma Catarina Ramos.Palavra de cozinheira para quem ensinar não é tudo. Actualmente, anda a “investigar” a comida macaense. “Estou a tentar juntar umas receitas - não para publicar pois não faltam no mercado -, mas para guardar em chinês e inglês, uma vez que em português já existem bons livros de receitas”, diz Catarina Ramos, elogiando o livro de Cecília Jorge, “À mesa da diáspora”. O objectivo é transmitir o saber macaense às suas amigas chinesas que “não fazem ideia do que é”. Catarina diz que, por vezes, juntam-se em sua casa para cozinhar, trocar receitas e elas simplesmente “adoram a comida macaense”. A gastronomia portuguesa e a francesa são as suas especialidades, aprendidas num curso de hotelaria em Lisboa, mas a dedicação à macaense surgiu através de uma curiosidade despertada por umas receitas antigas retiradas do fundo do baú de uma tia do marido, actualmente com 103 anos. “Eram esquisitas, engraçadas, mas eu não as percebia porque eram em patuá e sem medidas!”, recorda. É que cozinhar a olho, “só com muita experiência e em casa para a família e amigos!”, garante. Ajudando-a a decifrar o patuá, o marido temperou o entusiasmo da cozinheira em ressuscitar e inscrever a comida macaense no tempo.“É uma relíquia”, conclui a cozinheira. A sua conservação deve ser feita em qualquer local do mundo que aprecie os sabores macaenses e não tem prazo de validade. Pelo menos, na cozinha de Catarina Ramos e na da ADM.O original é sempre o melhorMais molhos na macaense, assados e grandes quantidades na portuguesa, fineza na chinesa. “A maioria dos chineses não sabe distinguir a comida macaense da portuguesa”, aponta Catarina Ramos. Alguns restaurantes até se aproveitam do facto para escrever “macaense” no cardápio sem corresponderem com os pratos originais, mas a própria reconhece que não existem grandes diferenças. “À primeira vista, a apresentação da gastronomia macaense é mais fina e trabalhosa, enquanto que a portuguesa liga mais à quantidade e variedade”, explica. Como exemplo, aponta para as inúmeras maneiras de preparar um “minchi”, que pode incluir várias carnes. A comida macaense é, por isso, mais difícil de elaborar? “Para quem gosta, nada é difícil. Se não gostar, estrelar um ovo é difícil!”, responde a cozinheira. No seu entender, a gastronomia macaense não é mais saudável que a portuguesa. “A mais saudável é a mais leve possível e menos condimentada. A macaense também é um pouco forte”, diz. Hoje em dia, os mais jovens já não têm os ingredientes paciência e tempo para a receita da culinária, lamenta Catarina Ramos. É que a culinária merece ser tratada com “amor e muita concentração”.
in JTM, Macau
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